Charles Wreford-BrownDia 8 de dezembro de 1863 é uma data praticamente ignorada pelos fãs do futebol. Mas pode ser considerado o dia do nascimento definitivo do futebol moderno. Os almanaques e as enciclopédias se referem apenas a 26 de outubro daquele ano, quando 11 times ingleses se uniram para firmar as bases das regras do esporte. Nascido nas universidades, o futebol estava envolvido em uma polêmica discussão: deveria ser jogado com os pés, como queria a Universidade de Harrow, ou com as mãos, como queria a Universidade de Rugby. Então, em 8 de dezembro, optou-se por uma saída diplomática: o futebol seria jogado com os pés e um novo esporte, chamado justamente de rúgbi, usaria as mãos.

Dali em diante, a prática das duas modalidades se espalhou rapidamente pelo país, sobretudo no ambiente universitário. “O futebol era jogado basicamente nas escolas e nas universidades”, afirma John Mills, historiador inglês e biógrafo de Charles Miller, considerado o pai do futebol brasileiro. “Antes da fundação da Football Association, a federação de futebol inglesa, cada universidade tinha suas regras. A FA chegou e padronizou tudo. A partir daí o esporte passou a ser chamado de football association”.

Na década de 1880, o futebol já desfrutava de alguma popularidade no Reino Unido. Os países já tinham seleções, os campeonatos já aconteciam, a rivalidade entre País de Gales, Escócia e Inglaterra já era intensa e o “football” ou “association” já era assunto nas conversas pelo país afora. Durante um café da manhã na Universidade de Oxford, por exemplo, o estudante de Medicina Charles Wreford-Brown falava aos amigos do esporte que praticava. “Na época, os estudantes brincavam de inventar palavras a partir das primeiras letras, adicionado “er” no final. Então, o rúgbi era chamado de “rugbber”, por exemplo”, aponta Mills.

Foi nesse momento que Wreford-Brown teve o estalo de criar a palavra “soccer” a partir de uma abreviação de “association”. “De início, o termo ‘soccer’ ficou restrito às universidades, mas depois se expandiu. Quando o esporte chegou aos Estados Unidos, o país tinha saído de uma Guerra Civil com a Inglaterra e não aceitava os esportes ingleses como eles chegavam. Por isso, o rúgbi foi adaptado para “american football”, o críquete virou o beisebol e o futebol passou a ser chamado de soccer, como é até hoje”, continua Mills.

A participação do estudante na história do esporte mais popular do mundo não se resume ao termo “soccer”. Já estabelecida como poder maior da modalidade no país, a FA encontrou forte resistência no fim do século XIX e teve em Wreford-Brown um dos seus opositores. Nascido em 1866 em Clifton, no Estado de Bristol, ele se dividiu por muito tempo entre o críquete e o futebol. “O críquete se jogava no verão e o futebol no inverno”, esclarece John Mills. Vindo de uma família de bom nível econômico,  ele seguiu o caminho do amadorismo. Jamais recebeu  para defender os clubes pelos quais jogou – primeiro como goleiro e depois como meio-campista.

Na época, havia um conflito entre aqueles que eram favoráveis à profissionalização do futebol e os que defendiam a manutenção do amadorismo. Wreford-Brown estava no segundo grupo, enquanto a FA foi a maior propulsora do primeiro. A associação nasceu como um movimento organizado para transformar o futebol e torná-lo rentável aos clubes, algo que Wreford-Brown considerava muito ruim para o esporte. “Era um profissionalismo marrom. Não existia contratos, nada. Mas, no norte da Inglaterra, que era mais industrial e onde os jogadores eram operários, eles passaram a receber ‘diárias’ e alimentação. Como o sul, onde esta Charles, era menos industrializado, isso não fazia sentido para ele”, prossegue Mills.

A divisão entre profissionais (chamados de “players”) e amadores (chamados de “gentlemans”) era séria e não faltam lendas em torno do assunto. Uma delas diz que, em um jogo da Seleção da Inglaterra, Charles Wreford-Brown entrou em campo com moedas de ouro no bolso do calção e as distribuiu para os profissionais que marcaram gols, como forma de protesto pela mercantilização do futebol. Como jogador, ele defendeu o Old Carthusians e o Corinthian FC, único time a representar a seleção inglesa até hoje.

No Corinthian, Wreford-Brown foi um dos maiores responsáveis pela batalha do time na recusa ao profissionalismo. Tanto foi assim que o clube foi obrigado a deixar o Campeonato Inglês, organizado pela FA. Até poderia disputar a Copa da Inglaterra, mas não se dispôs a jogá-la (e nem qualquer outro torneio). A proibição durou até 1900, quando o Corinthian passou a jogar algumas competições. Isso até Wreford-Brown entrar novamente em cena como um dos pilares da criação da Aliança Amadora do Futebol, em 1907, e de sua Liga, em 1914. Filiado à AFA, como ficou conhecida a aliança, o Corinthian não pôde mais enfrentar qualquer time profissional.

Por causa disso, o clube passou a excursionar pelo mundo em países como Suécia, África do Sul, Estados Unidos e Brasil, por onde passou em 1910. Segundo John Mills, a evolução na estrutura das ligas profissionais, que aconteceria algum tempo depois, começou a inviabilizar uma prática que era muito comum: “Os times ingleses faziam muitas excursões, especialmente pelas colônias britânicas como África do Sul, Canadá e Austrália, onde chegavam como embaixadores, mestres do futebol. O Corinthian veio ao Brasil a pedido de Charles Miller e do Fluminense. Na época, uma viagem dessa durava mais ou menos seis meses, então era preciso pedir dispensa das ligas”.

A equipe do Corintian era uma verdadeira seleção e goleava até mesmo os campeões profissionais em amistosos. Com 15 gols em três jogos em São Paulo, o Corinthian encantou cinco operários paulistanos que fundaram, alguns dias depois, o Sport Club Corinthians Paulista. A profissionalização do futebol, entretanto, foi fatal para o clube inglês, que em 1939 se fundiu ao Casuals e deu origem ao Corinthian-Casuals, que hoje está na quinta divisão na hierarquia do futebol britânico.

Rendido ao profissionalismo, Wreford-Brown foi técnico da seleção inglesa nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, sendo eliminado nas quartas de final para a Polônia ao perder por 5 a 4. A partir de 1944 e até sua morte, em 1951, trabalhou como vice-presidente da própria FA durante o mandato de Sir Stanley Rous, que foi presidente da FIFA entre 1961 e 1974. “O amadorismo resistiu até mais ou menos 1910”, finaliza Mills. “Hoje, ainda existem times amadores, como o próprio Corinthian-Casuals, mas em outras ligas menores, sem condição de competir com os grandes”.