Na quarta-feira da semana que vem, o Corinthians inicia sua participação na Copa Libertadores da América, contra o Once Caldas, da Colômbia, na Arena Corinthians. Impossível não lembrar que a última estreia alvinegra na competição sul-americana foi marcada por uma grande tragédia. Há dois anos, no dia 20 de fevereiro, o jovem boliviano Kevin Spada, de 14 anos, foi assassinado com um tiro de sinalizador, disparado por um integrante da torcida do Corinthians, no jogo contra o San Jose, da Bolívia. Doze torcedores acabaram presos e ficaram detidos na Bolívia – um grupo de sete torcedores foi solto em junho de 2013, enquanto os cinco restantes aguardaram mais dois meses no Centro Penitenciário de San Pedro, em Oruro, até serem libertados. O menor H.A.M., então com 17 anos, assumiu a autoria do disparo do rojão que matou Kevin assim que desembarcou em São Paulo. Houve na época forte suspeita de que o menor seria apenas um “laranja” para encobrir o verdadeiro autor do disparo. Outros dois torcedores foram identificados pela polícia boliviana como autores do disparo. As últimas notícias de H. haviam sido publicadas pelo portal iG Esporte em 19 de fevereiro de 2014. Como deixara de ser menor de idade, a reportagem publicou o nome completo do rapaz pela primeira vez: Helder Alves Martins. O texto dizia que o rapaz estava afastado dos Gaviões da Fiel (os sócios teriam raiva daquilo que ele fez) e que ele estava ganhando um salário mínimo num emprego registrado na rede de cinemas Cinemark.
Hoje, a seis meses de completar 20 anos, Helder está de volta à torcida. E não apenas como um torcedor qualquer. Ele ganhou o comando do Departamento de Bandeiras e lidera um grupo de oito garotos, de 14 a 18 anos, que o auxilia nos cuidados com o chamado “patrimônio” da instituição. As bandeiras ficam numa pequena sala no fundo da quadra da torcida organizada Gaviões da Fiel. O repórter Lucas Paschoal, do Blog do Curioso, passou a tarde da última quinta-feira anonimamente na quadra da torcida. Conversou com sócios e com o próprio Helder. “Ele ainda tem cara de menino. Foge totalmente daquele esteriótipo de pessoa truculenta”, descreve Lucas. “É um jovem tranquilo, que fala baixo e pausadamente. Tem uma feição serena, anda devagar, trata todo mundo com respeito e simpatia, além de ter um bom papo”.
Em fevereiro de 2013, Helder embarcou na caravana que mudaria sua vida. Pagou 200 reais por um lugar no ônibus que levaria os torcedores organizados até Oruro, pequena cidade a 196 km da capital boliviana La Paz. A mãe de Helder, costureira, declarou na ocasião que o filho não tinha emprego, apenas estudava. Não foi a primeira caravana de Helder com os Gaviões. Em 2012, ele assistiu à primeira partida final da Libertadores, contra o Boca Juniors, no Estádio La Bombonera, em Buenos Aires. “Caravana é a melhor coisa que tem”, afirma Helder. “Já fui para Argentina, Paraguai, Rio de Janeiro, Ceará. Se não fossem as caravanas, eu não teria conhecido quase o Brasil inteiro. O lugar mais bonito que já fui foram as Cataratas [do Iguaçu].” Entre os destinos citados, Helder não disse, em momento algum, que havia ido à Bolívia.
O emprego na rede Cinemark durou pouco tempo. No momento, Helder está desempregado – e por causa de sua paixão pelo time. “Meu último emprego foi em uma malharia, aqui atrás da quadra”, conta. “Ganhava pouco mais de mil reais, mas comecei a mostrar muito atestado e a faltar muito para ver os jogos do Corinthians. Acabei sendo mandado embora”. Helder sempre estudou em colégios públicos. Em 2013, o jovem ganhou uma bolsa de estudos no Colégio Drummond para cursar o último ano do ensino médio. O colégio presenteou a torcida Gaviões da Fiel com a bolsa, que a repassou a Helder. “Estudei com cinco jogadores das categorias de base do Corinthians; um deles era o Gustavo Tocantins, meu melhor amigo, que já subiu para o profissional”, relembra. Helder diz odiar estudar porque nunca recebeu estímulos de professores e por considerar as matérias desinteressantes – apesar de sua favorita ser História. Quando terminou o ensino médio, começou a cursar Automação Industrial, na Faculdade Drummond, ainda como bolsista. “Repeti o primeiro semestre e larguei, as contas de matemática eram muito difíceis”, justifica.
Helder, o terceiro filho entre seis irmãos, mora no Parque do Gato, conjunto habitacional de 486 unidades, dividido em 9 blocos, localizado a apenas 350 metros da quadra dos Gaviões da Fiel, no bairro paulistano do Bom Retiro. Atualmente, Helder passa a grande parte do seu tempo na sede da torcida organizada. “Tem que tomar cuidado porque isso aqui [a quadra] vicia”, diz. “Vou em quase todos jogos do Corinthians.” A julgar pela página de Facebook do torcedor, isso é uma grande verdade. Ele escreveu que “estuda na Instituição de Ensino Grêmio Gaviões da Fiel Torcida” desde 12 de outubro de 2010. Ainda curte duas dezenas de páginas ligadas ao Corinthians. Aliás, a página mostra várias preferências de Helder. Ele segue músicos (Zeca Pagodinho, Racionais MC’s, Mc Bagaça, Michael Jackson, e Jorge e Mateus), artistas (o fortão Terry Crews, Tyler James Williams e Mr. Bean), lutadores (Renan Barão e José Aldo) e o jogador Paulo André. Também é fã de “Sorrir é o Melhor Remédio”, “Juventude Jesus Necessita de Vocês”, “Play Paintball”, “Playstation”, loja de roupas M.Officer e agência de empregos Catho. Acompanha tanto páginas de hooligans e de black-blocs quanto do Exército e da Marinha brasileiros. Já estampou em seu perfil uma frase da página Frases Ultra Hooligan: “Se eu lutar, siga-me/Se eu morrer, vingue-me/Se eu fugir, mate-me”.
Na única entrevista que deu sobre o assunto até hoje, para o repórter Valmir Salaro, do programa Fantástico, da Rede Globo, Helder contou que o sinalizador disparou quando estava comemorando o gol: “Coloquei o sinalizador na mochila, dentro de uma sacola, e fui acender. Pra mim, era igual aos outros. Tirei a tampinha, puxei a cordinha e não aconteceu nada. Puxei pela segunda vez e disparou na torcida boliviana. Não fiz mira, não sabia que sairia voando. No intervalo, perguntei aos policias se tinha machucado alguém, disseram que não. Pra mim, depois daquele momento, falei: “Nossa minha vida acabou. O que vou fazer? Matei uma criança, 14 anos de idade.”
Em 2013, Helder declarou em depoimento na Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos, na Grande São Paulo, que comprou seis sinalizadores de um camelô na Rua 25 de Março. Pagou 120 reais pelo material de uso exclusivo da Marinha. Na última quinta-feira, Helder fez uma vaquinha entre os membros da torcida para conseguir os mesmos 120 reais. O objetivo era arrecadar dinheiro para que ele e os meninos do seu Departamento de Bandeiras pagassem a caravana e o ingresso para assistir à partida Corinthians x São Paulo, pela semifinal da Copa São Paulo, em Limeira (SP). “A Gaviões não paga nada para gente, aqui é só por amor”, garante. Em pouco menos de 4 horas, ali dentro da quadra, juntou o dinheiro.
Ao contrário dos doze corintianos que foram presos na Bolívia, Helder não sofreu nenhuma punição judicial. O processo, que passou pelas mãos dos promotores Gabriel Rodrigues Alves e Alfredo Santos, foi arquivado em agosto de 2013 pela Justiça brasileira. “Em alguns casos, é possível saber se o réu está mentindo apenas pelas feições corporais”, explica Rodrigues Alves. “Quando o autor é menor de idade, existem dúvidas sobre a veracidade do caso, porque as consequências a ele são menores.” Como correu sob segredo de Justiça, não se conhece o teor do processo. Entre os torcedores presos na Bolívia, alguns voltaram ao noticiário policial. Leandro Silva de Oliveira, Hugo Nonato e Cleuter Barreto Barros foram flagrados na briga entre as torcidas de Vasco e Corinthians, no dia 25 de agosto de 2013, em Brasília; Tiago Aurélio dos Santos Ferreira participou da invasão ao CT do Corinthians em 1º de fevereiro de 2014; e Raphael Machado Castilho Araújo foi preso em troca de tiros com a polícia na Bahia. A título de curiosidade, Cleuter e Leandro foram os torcedores acusados pela polícia boliviana de terem disparado o sinalizador no Estádio Jesús Bermúdez. O Corinthians pagou 55 mil dólares de indenização à família de Kevin Spada.
Todos os torcedores – incluindo Helder – foram defendidos pelo advogado Ricardo Cabral, que mantém contato com o garoto até hoje. Cabral também é o escudo que protege o rapaz dos jornalistas e das entrevistas. Helder sumiu por algum tempo da quadra dos Gaviões da Fiel até ser esquecido pelo noticiário. “Tive problemas, mas não consigo ficar longe daqui”, diz. “Perdi muitas oportunidades na vida e não sei se as terei novamente”. Antes de partir, o garoto, de olhos fundos e distantes, recolhe as passagens dos torcedores que embarcam no ônibus 5 em direção à Limeira. Sorridente, entra no ônibus de número 13 para mais uma viagem com a torcida. A próxima grande caravana dos Gaviões está marcada para 11 de fevereiro de 2015, quando o Corinthians enfrentará o Once Caldas, em Manizales, na Colômbia. A ausência de Helder já está confirmada. “São oito dias para ir e oito para voltar”, justifica. Por outro lado, afirma categoricamente que, se o Corinthians passar da fase inicial, cruzará a fronteira para assistir aos duelos contra San Lorenzo, da Argentina, e Danúbio, do Uruguai. “Vou com certeza! A torcida do San Lorenzo é linda demais”.
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