(Texto de Sérgio Miranda Paz, com colaboração de Ademir Takara e Gustavo Longhi de Carvalho, especial para o Centro de Referência do Futebol Brasileiro e cedido também para o Guia dos Curiosos)

O Rei torcedor

1. Cachoeiro FC e Estrela do Norte FC são os dois times de futebol da cidade de Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo, onde nasceu Roberto Carlos, em 19 de abril de 1941. Os dois times foram fundados em janeiro de 1916, em dois domingos consecutivos (dias 9 e 16).

2. O Cachoeiro F.C. foi o primeiro time do interior do Espírito Santo a conquistar o campeonato estadual, em 1948. Esse foi seu único título da primeira divisão. Com problemas financeiros, desde 2015 o clube está afastado das competições profissionais.

3. Depois dos três grandes times do Espírito Santo (Rio Branco, Vitória e Desportiva Ferroviária), o Estrela do Norte F.C. é o clube com o maior número de participações (44) na primeira divisão do campeonato capixaba. Seu único título, porém, foi conquistado em 2014, aos 98 anos. Antes, o time já havia obtido cinco vice-campeonatos.

ESTRELA DO NORTE - ES

4. Apesar desses dois tradicionais rivais, a grande maioria dos moradores de Cachoeiro de Itapemirim, nos anos 1940, torcia para os times do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, devido à grande audiência das emissoras de rádio cariocas, especialmente a Rádio Nacional e a Rádio Mayrink Veiga.

5. Por influência de seus familiares, até os quatro anos Roberto Carlos era torcedor do Flamengo, que em 1944 conquistou seu primeiro tricampeonato carioca, tendo como destaque o atacante Zizinho, um dos maiores craques da história do futebol brasileiro.

6. No ano seguinte, o menininho Roberto Carlos tornou-se botafoguense, provavelmente pela enorme popularidade que tinha, em meados dos anos 40, dentro e fora de campo, o atacante mineiro Heleno de Freitas, apelidado de “Gilda” por sua beleza e por seu temperamento, tal qual a personagem principal de um filme de muito sucesso na época, estrelado pela exuberante atriz Rita Hayworth.

7. Aos oito anos, Zunga, como Roberto Carlos era chamado por sua família, sem deixar de ser alvinegro, trocou a Estrela Solitária pela Cruz de Malta: passou a torcer definitivamente para o Vasco da Gama, o time da colônia portuguesa do Rio de Janeiro.

8. Não foi por influência do avô materno Joaquim, português, que Zunga se tornou vascaíno, mas sim pela admiração pelo grande time do Vasco do final dos anos 40, campeão carioca invicto de 1949 (com 18 vitórias e 2 empates) e apelidado de “Expresso da Vitória”, porque “atropelava” todos os seus adversários.

VASCO DA GAMA - EXPRESSO DA VITÓRIA

9. Em 1974, já famoso, o Rei da Jovem Guarda pôde celebrar o primeiro título brasileiro de seu time, que tinha como destaque seu xará, Roberto Dinamite, que mais tarde seria presidente do clube.

10. Aos 15 anos, Roberto Carlos mudou-se para a casa de uma tia, em Niterói, para tentar seguir a carreira de cantor. Logo fez amizade com garotos do bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Dentre eles, um rapaz alto, apaixonado por rock e mais fanático ainda pelo Vasco da Gama, onde atuava seu ídolo, o zagueiro Bellini.

11. Mais por causa do físico do que do talento futebolístico, o tal rapaz grandão achava que podia ser jogador, e se apresentou numa “peneira” no América, clube da Tijuca, próximo à sua casa. Porém, em vez de tentar um lugar na defesa, optou por treinar no meio-de-campo. Pela falta de intimidade com a bola, acabou reprovado. Se tivesse sido aprovado, a dupla Roberto e Erasmo Carlos, parceiros em centenas de composições e na torcida pelo Vasco da Gama, talvez nunca tivesse existido!

12. Em 1965, quando foi contratado pela TV Record para apresentar o programa “Jovem Guarda”, Roberto Carlos se mudou para São Paulo. Passou, então, a torcer também para o Palmeiras, clube próximo ao seu apartamento, na Rua Albuquerque Lins. Único time que conseguia fazer alguma resistência ao Santos de Pelé e chamado de “Academia”, o Palmeiras tinha como principal estrela, nos final dos anos 1960, o “Divino” Ademir da Guia.

ADEMIR DA GUIA

13. Mais do que a proximidade do clube e a categoria de Ademir da Guia e seus companheiros, o principal motivo para Roberto Carlos torcer para o alviverde foi o desejo de agradar a família italiana da mulher pela qual se apaixonou, e com a qual se casaria, em 1968: Cleonice Rossi, a Nice.

14. Recentemente, Roberto Carlos ganhou do presidente do “Verdão”, Maurício Galiotte, uma camisa comemorativa do centenário do clube, na cor azul, a preferida do cantor.

15. Apesar de ser filho de palmeirense e de ter vivido sua infância numa confortável casa no Morumbi, bem próximo ao estádio do São Paulo, Dudu Braga, o primogênito de Nice e Roberto, é um fanático corinthiano!

Substituição na TV: sai o futebol, entra a turma do Rei

16. Por volta de 1965, das cinco emissoras de TV que podiam ser sintonizadas pelos paulistanos, três brigavam efetivamente pela liderança da audiência: a pioneira TV Tupi, canal 4; a TV Record, canal 7; e a TV Excelsior, canal 9. Além de sua linha de shows, um dos principais trunfos da TV Record eram as transmissões ao vivo de jogos de futebol, aos domingos, à tarde. JOVEM GUARDA

17. O dono da Record era Paulo Machado de Carvalho, ex-dirigente do São Paulo F.C., que havia sido o chefe da delegação brasileira nas conquistas dos Mundiais de 1958 e 1962. Por isso, ele era chamado de “Marechal da Vitória” e, em sua homenagem, o estádio do Pacaembu havia recebido seu nome.

18. Em meados de 1965, pressionada pelos clubes paulistas, a Federação Paulista de Futebol (FPF) decidiu proibir as transmissões ao vivo do futebol, que estavam diminuindo a presença de torcedores nos estádios e, em consequência, a renda obtida com a venda de ingressos. Pegos de surpresa, os diretores da TV Record, que já exibia vários programas musicais, decidiram preencher o espaço vago deixado pelo futebol com uma atração voltada para o público jovem.

19. Assim, no dia 22 de agosto de 1965, direto do Teatro Record da Rua da Consolação, em São Paulo, entrava no ar o primeiro programa “Jovem Guarda”, apresentado por Roberto Carlos e por seus amigos Erasmo Carlos e Wanderléa. Naquela mesma tarde, a menos de 1km dali, no Estádio do Pacaembu, o Santos goleava a Portuguesa por 4×0, com três gols de Pelé. Sem TV ao vivo!

O Rei batizando jogadores

20. Na década de 60, quando Roberto Carlos se tornou famoso, e na seguinte, quando ele atingiu o auge em sua carreira, predominaram, para os jogadores de futebol, os apelidos, geralmente curtos, como Pelé, Didi, Vavá, Zito, Garrincha, Zico, Tostão, Edu, além de prenomes, desde que não muito comuns, como Gilmar, Félix, Mauro, Jair, Zózimo, Gerson, Amarildo, Clodoaldo, e de sobrenomes não muito longos, como Bellini, Brito, Piazza, Rivelino, Zagalo. Nomes compostos, como Carlos Alberto e Marco Antônio, eram mais raros. E praticamente inexistiam os que eram chamados por nome e sobrenome, o que hoje é bastante frequente.

21. Como toda a regra tem sua exceção, nos anos 70 surgiram dois jogadores de nomes comuns, que tiveram bastante sucesso em suas carreiras. No Vasco da Gama, “explodiu” o cabeludo Roberto, atacante que logo ganhou o apelido de “Dinamite”. Um pouco mais jovem que ele, despontou na Ponte Preta o goleiro Carlos.

22. Roberto e Carlos são xarás: ambos foram registrados com o nome “Carlos Roberto”. Ambos são também xarás do volante Carlos Roberto, que surgiu no Botafogo ainda nos anos 60, e que chegou a disputar alguns amistosos pela Seleção Brasileira.

23. Evidentemente, nenhum desses “Carlos Roberto” deve seu nome de batismo ao cantor Roberto Carlos, até porque os três nasceram antes que o Rei da Jovem Guarda se tornasse famoso.

24. Porém, assim que começou a fazer sucesso, o cantor teve o seu nome dado a milhares de recém-nascidos pelo Brasil afora. Em 1973, numa fazenda produtora de café na cidade de Garça, interior de São Paulo, nasceu um garoto que foi registrado com o nome de Roberto Carlos da Silva Rocha, filho de um humilde lavrador, grande fã do cantor.

25. Muito cedo o menino mostrou aptidão para o futebol, especialmente pelo fortíssimo chute com sua perna esquerda. Revelado pela equipe do União São João, de Araras-SP, acabou sendo contratado pelo Palmeiras, tendo depois uma brilhante carreira no exterior, atuando na Internazionale de Milão e no Real Madrid, além de rápidas passagens pelo futebol grego e pelo Corinthians, já no fim de sua carreira.

26. Como seu pai, o lateral esquerdo Roberto Carlos se tornou um grande fã do Rei da Jovem Guarda, a quem deve o nome que, no seu caso, lhe deu bastante sorte!

27. Contemporâneo do lateral, o zagueiro Odvan defendeu mais de duas dezenas de times, com maior destaque para o Vasco da Gama (só poderia ser o time do Rei!). Nascido em Campos dos Goytacazes-RJ, Odvan Gomes da Silva teve seu prenome escolhido pela mãe, dona Vera Lúcia, por causa da música O divã, canção de Roberto e Erasmo gravada por Roberto em 1972, que relata algumas passagens de sua infância, fazendo, inclusive, referência aos sentimentos do cantor provocados pelo acidente em que perdeu parte de sua perna direita.

28. Odvan é, muito possivelmente, o único futebolista brasileiro – e, talvez, do mundo – a ter seu nome dado por causa de uma canção.

Os palcos do Rei

29. Nos últimos anos, como quase todos os grandes astros da música internacional, Roberto Carlos tem se apresentado nas modernas “arenas multiuso”, que é como têm sido chamados os estádios de futebol recém-construídos ou adaptados para poderem receber grandes espetáculos musicais.

30. A lista a seguir enumera alguns shows de Roberto Carlos realizados em estádios, nos últimos
20 anos:

31. O primeiro show da lista, em outubro de 2004, no Pacaembu, foi também o primeiro de Roberto Carlos em um estádio de São Paulo. O público de 40 mil pessoas pôde desfrutar de razoável conforto e da ótima visibilidade que o simpático estádio paulistano oferece. Foi um dos últimos shows realizados ali, pois em novembro de 2005 a associação de moradores do bairro conseguiu uma liminar na justiça, e desde então não se realizaram mais espetáculos musicais no estádio.

32. Em 2009, Roberto Carlos comemorou seus 50 anos de carreira com duas apresentações especiais. No dia de seu 68º. aniversário, exibiu-se no acanhado Estádio do Sumaré, do Estrela do Norte F.C., time de sua cidade, Cachoeiro de Itapemirim ES. E, em 11 de julho de 2009, apresentou-se pela primeira vez no Maracanã, numa superprodução transmitida pela TV Globo, perante 68 mil pessoas (seu recorde em estádios de futebol), dentre as quais diversas estrelas globais.

33. Assim como nos shows de Cachoeiro, Roberto Carlos parece ter prazer em comemorar seus aniversários com seus fãs. Isso aconteceu também em 2015, na véspera de completar 74 anos, quando o Rei pôde se exibir no estádio de um dos times do qual é torcedor: o Palmeiras. Foi o segundo show realizado na arena Allianz Parque, poucos meses depois de ter sido inaugurada pelo ex-beatle Paul McCartney.

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34. Estádios de outras capitais brasileiras, como Goiânia, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza, Aracaju e Natal, além de Brasília, também já receberam shows de Roberto Carlos, que já tem várias apresentações agendadas para depois do término da pandemia.

Clima de torcida de futebol a favor… e contra o Rei

35. Entre 1965 e 1969, foram realizados no Brasil onze importantes festivais competitivos de música popular, organizados e transmitidos pelas principais emissoras de TV de São Paulo e do Rio de Janeiro. Contratado pela TV Record de São Paulo, Roberto Carlos participou, como intérprete, de três desses festivais, nos quais enfrentou um verdadeiro clima de arquibancada de futebol.

36. No festival da TV Record de 1966, Roberto Carlos foi escalado para defender dois sambas: o grande favorito Anoiteceu, de Francis Hime e Vinicius de Moraes, e Flor maior, de Célio Borges Pereira. Porém… “deu zebra”! A banda, de Chico Buarque, interpretada por ele e Nara Leão, e Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, interpretada por Jair Rodrigues, dividiram o primeiro lugar, para a alegria do público que lotou o Teatro Record.

37. Apesar de “jogar em casa” – afinal, aquele era o teatro onde semanalmente, nas tardes de domingo, era aclamado por seus “torcedores” – Roberto foi recebido friamente pelo público do festival, que não era o seu público, e não conseguiu colocar nenhuma das duas músicas entre as seis primeiras – Anoiteceu nem mesmo chegou à final.

38. No ano seguinte, Roberto Carlos foi novamente convocado, e outra vez interpretou um samba, agora de Luiz Carlos Paraná: Maria, carnaval e cinzas, uma canção de temática social, completamente fora de seu estilo. Apresentando-se na primeira eliminatória, Roberto causou no público uma reação ainda mais surpreendente do que a frieza do ano anterior: foi vaiado! Mesmo assim, Maria, carnaval e cinzas foi classificada para a final, quando as vaias a Roberto Carlos foram ainda mais veementes.

39. O Rei da Jovem Guarda, porém, pareceu não se perturbar com elas. Cantou olhando para as câmeras, pois sabia que sua “torcida” não era aquela ali presente, mas, muito maior, era a que estava em casa, vendo-o pela TV. No final, Maria, carnaval e cinzas conseguiu um honroso e merecido quinto lugar, atrás dos favoritos Ponteio (de Edu Lobo e Capinan), Domingo no parque (de Gilberto Gil), Roda viva (de Chico Buarque) e Alegria, alegria (de Caetano Veloso).

40. Quem não soube enfrentar a torcida adversária daquela noite foi o cantor e compositor Sérgio Ricardo, que defendeu (ou tentou defender) uma composição sua cujo tema, curiosamente, era o futebol: Beto bom de bola. No seu caso, as vaias foram tantas e tão altas que ele, sem conseguir ouvir os músicos que o acompanhavam, perdeu totalmente o controle, quebrou seu violão e o arremessou na plateia. Acabou “expulso de campo”. Considerado de má sorte em festivais, o tema futebol foi deixado “na reserva” pelos compositores por um bom tempo, mas em 1972 voltaria para marcar um “gol de placa”, com Maria Alcina interpretando Fio Maravilha, de Jorge Ben.

41. Já pensando em uma futura carreira internacional, no início de 1968 Roberto Carlos fez sua estreia em festivais no exterior. E logo no mais emblemático deles, o Festival de San Remo, na Itália, criado em 1951, e que acontece até hoje! Em 1968, Roberto interpretou Canzone per te, de Sergio Endrigo e Sergio Bardotti. Embora a torcida italiana pelo futebol seja tão ou mais apaixonada que a brasileira, nos festivais de música o pessoal lá da península é um pouco mais sereno. Mas, aqui no Brasil, criouse um clima de Copa do Mundo; afinal, o nosso “Pelé” da música estava disputando um troféu em “campos” europeus. Em vez da “pátria de chuteiras”, naqueles dias nos tornamos a “pátria de microfones”. E, como “com brasileiro, não há em possa”, mais uma vez ficamos com a taça!

42. A vitória, na realidade, foi de uma canção composta por dois italianos, sendo que um deles, Sergio Endrigo, também a interpretou, para atender o regulamento do festival. Mas a torcida brasileira, contaminada por um ufanismo incentivado pelo regime, nem quis saber disso: assim que o avião que trazia Roberto Carlos de volta ao Brasil pousou em Congonhas, a pista do aeroporto foi invadida por milhares de fãs, ávidos por conduzir nos ombros o novo “campeão mundial da música”, repetindo o que tinha sido visto nas ruas paulistanas em 1958 e 1962 com os bicampeões de futebol, e já ensaiando a festa que aconteceria pouco mais de dois anos depois, com a Seleção do Tri no México.

43. Ainda no final de 1968, Roberto Carlos participou de seu último festival no Brasil, interpretando, desta vez, a valsa Madrasta, de Beto Ruschel e Renato Teixeira. Ficou bem claro que o cantor “vestiu a camisa” da canção, talvez porque ele próprio, recém-casado com Nice, que já tinha uma filha de seu casamento anterior, era um padrasto. Tão ou mais vaiado do que quando interpretou Maria, carnaval e cinzas, novamente Roberto Carlos conseguiu classificar-se para a finalíssima, mas, desta vez, não ficou nas cinco primeiras posições. O campeão foi Tom Zé, com sua São, São Paulo, meu amor.

O Rei canta o futebol

44. A grande maioria das centenas de canções gravadas por Roberto Carlos fala de amor. Ecologia e religião foram outros temas presentes em suas músicas feitas com Erasmo Carlos, eterno parceiro com que tem um entendimento que pode ser comparado ao de Pelé e Coutinho, quando faziam suas tabelinhas. Das centenas de composições da dupla, raras são as que citam o futebol.

45. A primeira composição de Roberto Carlos, ainda sem seu parceiro, é a canção Susie, de 1962. Nela, ele conta ter visto perto de sua casa “um broto encantador”, e tenta chamar a sua atenção. A garota, porém, “não lhe dá bola”. Esta expressão, derivada do futebol, é a primeira referência ao esporte presente em uma canção de Roberto Carlos… e logo em sua composição de estreia!

46. Susie foi apenas uma dentre muitas paixões em sua juventude. Nessa época, não lhe faltavam pretendentes. Mas quando alguma vinha falar em casamento… aí, como um Garrincha driblando um João qualquer, ele tratava de mudar de assunto e até falava em futebol, pois casar-se estava bem distante de seus planos, como ele confessa em Não é papo prá mim, de 1965.

47. Mas a bola não era o principal interesse do jovem conquistador. Apaixonado por carros e pela velocidade, em 1967 ele confessava: Eu sou terrível, canção que, em 2006, fez parte da trilha sonora do belo filme “O ano em que meus pais saíram de férias”, de Cao Hamburger, que conta a história de um garoto apaixonado por futebol durante a disputa da Copa do Mundo de 1970.

48. Na disputa pelas garotas, o “Tremendão” Erasmo exibia a autoconfiança de um Romário. Julgava-se O dono da bola, canção da dupla, de 1967, mas, às vezes, sentia um dissabor semelhante ao de um gol perdido cara a cara com o goleiro adversário.

49. Essas histórias, vividas nos bons tempos de adolescência no Rio de Janeiro, Erasmo contaria em 1984, em Turma da Tijuca (da qual Tim Maia também fazia parte), relembrando as brigas, “o nascer do rock’n’roll” e a “eterna sensação de gol”, tão própria da juventude.

50. O tempo, porém, passou, trazendo desilusões, dores de cotovelo e amores perdidos. De repente, Roberto se vê sozinho, à toa, e confessa: Tô chutando lata, canção de 1987. Ainda bem que ele estava calçado para chutar latas e para “dar um bico” na tristeza, pois, em 1980, em Amante à moda antiga, ele havia revelado à sua querida namorada que usava “um velho tênis” (seria kichute?).

51. Num bem humorado protesto contra tanta falsidade, em 1982 Erasmo cantava Pega na mentira, em que, botando banca nos torcedores adversários, anunciava que “Zico ‘tá no Vasco, com Pelé”. Conquistas vascaínas verdadeiras, porém, ele iria poder enaltecer em Nosso Vasco campeão, de 1998, um ano glorioso para o seu time, quando o centenário vascaíno foi celebrado com o título de campeão da Taça Libertadores de América.

52. Nos anos 2000, cantando nas arquibancadas “não para, não para, não para, vai prá cima, Timão”, a torcida corinthiana criou uma letra para a introdução da canção que talvez seja a mais significativa para a dupla: Amigo, de 1977.

53. Para exaltar a exuberância da natureza do Brasil e a garra do brasileiro, que é “bom no pé, deita e rola” e “é mesmo bom de samba e de bola”, Roberto e Erasmo compuseram, no final de 1985, Verde e amarelo. Essa canção embalou as expectativas da torcida brasileira durante a preparação da Seleção para a Copa do México, que seria disputada no meio do ano seguinte.

54. O otimismo era grande: o time mantinha as principais estrelas que, embora sem chegarem ao título, haviam encantado o mundo quatro anos antes, na Espanha, e até o treinador Telê Santana estava de volta. Infelizmente, Platini e seus companheiros franceses acabaram com os sonhos dos brasileiros, e Verde e amarelo perdeu a chance de, talvez como Pra frente, Brasil, ficar marcada como a trilha de uma campanha vencedora do nosso time.

O Rei e o Rei

55. Há vários pontos em comum entre Roberto Carlos, o Rei da Jovem Guarda, e Pelé, o Rei do Futebol. A começar pela idade: nascido em 23 de outubro de 1940, Pelé é menos de seis meses mais velho que Roberto Carlos, que nasceu em 19 de abril de 1941.

56. Ambos são de estados vizinhos ao norte do eixo Rio São Paulo: Pelé, mineiro de Três Corações; Roberto Carlos, capixaba de Cachoeiro de Itapemirim.

57. Quando meninos, Pelé e Roberto Carlos tinham o mesmo sonho: queriam ser aviadores. Suas mães, porém, tinham outros planos para eles: ambas desejavam vê-los formados em Medicina. Dona Celeste e dona Laura, se não conseguiram fazê-los médicos, tiveram influência decisiva na educação de seus filhos. É a elas que ambos devem sua religiosidade e sua formação católica.

58. As duas mães foram bastante longevas: dona Laura faleceu aos 96 anos; aos 97, dona Celeste está por aí, firme!

59. Em suas infâncias, Pelé e Roberto Carlos, ou melhor, Dico e Zunga, passaram por dois grandes sustos, tendo quase perdido suas vidas prematuramente em ocorrências com trens. Aos quatro anos, Dico debruçou-se na janela do vagão do trem em que viajava para Bauru com a família e, se não fosse a rápida intervenção do pai, que o segurou pela cintura, teria caído para o lado de fora. Aos seis anos, numa festa de São Pedro, Zunga foi atropelado por uma locomotiva a vapor que fazia manobras numa praça de Cachoeiro, tendo sido salvo graças à rápida intervenção de um rapaz que por ali passava e o levou a um hospital (no entanto, parte de sua perna direita acabou tendo que ser amputada).

60. Apesar de já ter sido flamenguista e botafoguense, e de sua paixão pelo Palmeiras, Roberto Carlos não esconde que, desde os oito anos, torce pelo Vasco da Gama, embora não seja muito fanático. Já o time da preferência do menino Pelé, hoje um notório santista, é uma questão bem nebulosa. Seus amigos de infância de Bauru e seu irmão Zoca diziam que ele era corinthiano. Contraditório, Pelé já admitiu isso, mas também já se declarou torcedor do Atlético de Minas Gerais, único time “grande” que seu pai defendeu. Mas Pelé parece ter sido mais enfático quando afirmou ter sido torcedor também do Vasco da Gama, mesmo nome de um time de São Lourenço MG, onde seu pai também atuou.

61. O zagueiro Augusto, que por muitos anos defendeu o Vasco, está ligado de modo não muito positivo aos dois reis brasileiros. Em 1940, quando atuava pelo São Cristóvão, do Rio de Janeiro, Augusto teve um choque com Dondinho, pai de Pelé, que, estreando pelo AtléticoMG, machucou seriamente o joelho e praticamente encerrou sua carreira de atleta profissional. Em 1971, a canção Amada amante, de Roberto e Erasmo Carlos, só foi liberada pela Censura Federal depois que os versos “que manteve acesa a chama / que não se apagou na cama / depois que o amor se fez” foram substituídos por “que manteve acesa a chama / da verdade de quem ama / antes e depois do amor”. Um dos censores mais rigorosos da época, marcador implacável de compositores da música popular brasileira, era, justamente, Augusto da Costa, o antigo zagueiro do Vasco.Augusto da Costa e sua relação com Pelé e Roberto Carlos, os reis do Brasil

 

62. No dia da fatídica derrota da Seleção Brasileira (cujo capitão era Augusto) para o Uruguai, na
Copa do Mundo de 1950, no Maracanã, Pelé, vendo seu pai triste pelo inesperado resultado, lhe teria dito: “Não
fique triste, meu pai… Um dia eu vou ser jogador de futebol, e ganhar a Copa do Mundo para o senhor!”.
Naquele mesmo ano, num programa infantil de calouros numa rádio de Cachoeiro de Itapemirim, Roberto
Carlos, também com nove anos, comemorando seu feito com a mãe, teria dito a ela: “Pois é, mãe! Ganhei um
punhado de balas!… Foi um dia lindo!… Agora eu quero ser cantor!”.

63. Em 1956, aos 15 anos, ambos deram seu primeiro e decisivo passo em busca da realização de seus sonhos: cheios de coragem, sozinhos, deixaram para trás as casas de suas famílias, seus amigos e as cidades onde tinham passado suas infâncias. Roberto Carlos foi morar com uma tia, em Niterói RJ, para estar mais perto das grandes emissoras de rádio, das gravadoras e das casas de shows do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Pelé, levado pelo ex-jogador Waldemar de Brito, seu técnico no time de garotos do Bauru Atlético Clube, foi morar na concentração do grande time do Santos, campeão paulista do ano anterior.

64. A primeira chance de Pelé ser escalado como titular do Santos, em janeiro de 1957, veio com uma contusão do então titular absoluto da sua posição, o meia Vasconcelos, que fraturou a perna numa partida contra o São Paulo. Nunca mais Pelé voltaria para a reserva. No início dos anos 1960, o diretor artístico da gravadora CBS desentendeu-se com o cantor Sérgio Murilo, a maior estrela da música jovem da época, e resolveu apostar no novato Roberto Carlos, mesmo depois de seu primeiro LP ter sido um fracasso de vendas. A aposta deu certo: seu segundo LP o levou às paradas de sucesso. Em 1965, o mesmo Sérgio Murilo voltaria a ser preterido, agora na TV Record, quando Roberto Carlos foi escolhido para apresentar o programa “Jovem Guarda”.

65. Mesmo sendo admirados por milhões de súditos, o Rei do Futebol e o Rei da Jovem Guarda possuem alguns desafetos, principalmente pela postura “política” de ambos, considerados um tanto quanto “alienados” por “patrulheiros” que gostariam de vê-los mais atuantes nessa área.

66. Deve- se lembrar, porém, que, entre 1995 e 1998, Pelé foi Ministro dos Esportes do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um homem de histórica militância de esquerda. E que, por composições alinhadas às causas dos ativistas preocupados com o meio ambiente, como Eu quero apenas (1974), O progresso (1976), As baleias (1981) e Amazônia (1989), Roberto Carlos é às vezes chamado de “ecochato”.

67. Pelé, mais precoce e acelerado, alcançou fama de abrangência mundial, mas, sem exercer sua arte desde 1977, viu-se ameaçado de lhe tomarem a coroa do futebol, com o surgimento de outros candidatos a colocá-la na cabeça, como Zico, Ronaldinho Gaúcho, Neymar, Maradona, Messi… Roberto Carlos, ainda em atividade, certamente, já não é unanimidade entre os jovens de hoje, que desejam colocar no trono da música artistas que pulsam em outros ritmos e seguem outros estilos.

68. Cientes de que seus reinos não se contrapõem, Pelé e Roberto Carlos mantêm uma amizade distante, sem intimidade, mas respeitosa, que não foi abalada nem quando, nos anos 1980, estiveram em lados opostos em relação a outra figura da realeza cultural brasileira: a “Rainha dos Baixinhos”, a Xuxa, namorada de Pelé na primeira metade da década e principal concorrente de Roberto Carlos na vendagem de discos nos cinco anos seguintes.

69. Dos diversos encontros que os dois reis tiveram, talvez o mais significativo tenha sido no especial de fim de ano de 1977 de Roberto Carlos, na TV Globo. Às vésperas da Copa do Mundo da Argentina, além de Pelé, que tinha acabado de encerrar sua carreira, no Cosmos de Nova York, estiveram no programa outros dois gigantes do futebol brasileiro: Garrincha e Rivelino. Com Garrincha, Roberto Carlos jogou sinuca. Com Rivelino, a conversa foi sobre passarinhos. Já com Pelé, o assunto foi uma paixão comum: a música. Juntos, tocaram e cantaram a canção O mundo é uma bola (de Pelé).

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O Rei e as Copas do penta

70. Em 1958, Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo encantaram o mundo do futebol, com exibições primorosas nos quatro últimos jogos da Copa da Suécia, a primeira conquistada pelo Brasil. Roberto Carlos, aos 17 anos, ainda estava longe de suas conquistas. Tendo já deixado sua Cachoeiro de Itapemirim e passado uns tempos na casa de sua tia Dindinha, em Niterói, ele agora morava com os pais em Lins de Vasconcelos, subúrbio do Rio de Janeiro, e batalhava para se tornar um cantor profissional.

71. Roberto havia saído do “The Sputniks”, grupo de rock formado com rapazes que conhecera na Tijuca, devido a um desentendimento com um de seus membros, um certo Sebastião (que mais tarde o Brasil inteiro conheceria como Tim Maia). Agora, ele aparecia de vez em quando na TV, imitando Elvis Presley no “Clube do Rock”, programa da TV Tupi apresentado por seu conterrâneo, Carlos Imperial, mas quase ninguém o via (nem mesmo sua família), pois os aparelhos de TV ainda eram raros no Brasil. Afinal, nem os jogos da Copa eram transmitidos ao vivo!

72. Com poucas alterações no time (o ataque seria o mesmo se Pelé não tivesse se machucado no segundo jogo… felizmente, seu substituto Amarildo “deu conta do recado”), a Seleção Brasileira conquistou o bi no Chile, em 1962. A vida de Roberto Carlos, porém, mudou bastante nesses quatro anos. Com o surgimento da Bossa Nova, Roberto foi um dos muitos jovens cantores que tentaram imitar seu criador, João Gilberto, chegando a se apresentar em boates do Rio de Janeiro e a gravar dois discos de 78rpm. Em 1961, tinha até conseguido gravar seu primeiro LP (que, hoje, ele renega), misturando Bossa Nova, bolero, samba e chácháchá.

73. No entanto, a repercussão e as vendas dos discos foram nulas. Sentindo-se como um “jogador de time rebaixado para a segunda divisão”, aos 21 anos Roberto foi trabalhar como datilógrafo num escritório no centro do Rio. Porém, dois meses antes da Copa do Chile, ele começou a “virar o jogo”: gravou seu terceiro 78rpm, o primeiro de “música jovem”, com dois rock-baladas, e o “lado B”, Malena, de Rossini Pinto e Fernando Costa, fez algum barulho nas emissoras de rádio cariocas.

74. Os especialistas em futebol são quase unânimes em afirmar que, em 1970, a Seleção Brasileira atingiu seu apogeu, conquistando em definitivo a Taça Jules Rimet com aquele time maravilhoso dos “cinco camisas 10” (Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivelino). Já para os especialistas em Roberto Carlos, aquele ano marcava o fim do ciclo do cantor de música jovem, cujo apogeu tinha sido atingido três ou quatro anos antes, e o início do ciclo do cantor de música romântica, que chegaria ao apogeu em meados da década que se iniciava. De fato, embora ele ainda fosse chamado de Rei da Jovem Guarda (e é até hoje!), a Jovem Guarda, que explodira em 1965, já tinha ficado para trás. A carreira de ator de cinema, tão rápida quanto os carros que pilotou em seus filmes, iniciada em 1968, iria se encerrar no ano seguinte, com o lançamento de seu terceiro e último filme.

75. Nos discos lançados em 1969 e 1970 por Roberto Carlos, antes e depois da Copa do México, os rocks e baladas começavam a perder espaço para canções de enorme sucesso, e que até hoje costumam aparecer em seus shows, como a romântica Sua estupidez e a religiosa Jesus Cristo. Casado desde 1968 com a palmeirense Nice Rossi, Roberto, aos 29 anos, já era um respeitável chefe de família, morando numa mansão no bairro do Morumbi, em São Paulo, com sua esposa, sua enteada Ana Paula e seu filho Roberto Carlos Braga Segundo, o “Segundinho” (hoje, o Dudu).

76. Depois do tri, a Seleção Brasileira teve que aguardar 24 anos para chegar ao tetra, vencendo sem muito brilho o Mundial dos Estados Unidos, em 1994, com um time que teve no atacante Romário o seu grande protagonista, e no goleiro Taffarel e no atacante Bebeto seus principais coadjuvantes. Já Roberto Carlos, chegando aos 53 anos de vida e 35 de carreira, continuava sendo o protagonista dentre os cantores brasileiros, embora com alguns sinais de uma leve perda de brilho. Com a honrosa exceção de Nossa Senhora, nenhuma canção gravada na época chegou perto dos megassucessos das décadas anteriores.

77. Os tradicionais especiais de fim de ano do Rei, veiculados pela Rede Globo, porém, continuavam tendo altíssima audiência, e seus shows continuavam lotando ginásios, auditórios e casas de espetáculos em todo o Brasil. Com a vida profissional estabilizada, Roberto sentia-se como um campeão mundial em sua vida pessoal: depois de ter tido sua filha Luciana em 1971, de se separar de Nice em 1978 (ela viria a falecer em 1990) e de um casamento de dez anos com a atriz mineira Myrian Rios (entre 1979 e 1989), ele estava perdidamente apaixonado pela paulistana Maria Rita.

78. Com sete vitórias nos sete jogos disputados na Coreia do Sul e no Japão, o Brasil conquistou o penta em 2002 com o time dos quatro “R” (o lateral Roberto Carlos, o meia Rivaldo e os atacantes Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo). Este último dera um extraordinário exemplo de superação – depois de sofrer duas sérias contusões em seu joelho que o mantiveram afastado dos campos por cerca de dois anos, acabou sendo a grande estrela da copa e seu maior artilheiro. Mais ou menos no mesmo período em que Ronaldo esteve afastado, o Rei da Jovem Guarda também lutava para superar o momento mais triste de sua vida: a morte de seu grande amor, Maria Rita, no final de 1999. Naquele ano, pela primeira vez desde 1974, Roberto Carlos não gravou seu programa especial de fim de ano da TV Globo.

79. Depois de passar quase um ano longe de seus fãs, Roberto Carlos voltou ao palco em 11 de novembro de 2000, no Recife, num show que ele considerou o mais difícil de sua carreira. Como Ronaldo, o “Fenômeno”, Roberto superou seus traumas. Já sexagenário, foi gradualmente retomando seu ritmo normal de atividades até que, no final de 2002, em comemoração aos 90 anos do bondinho do Pão de Açúcar, realizou um mega-show no Aterro do Flamengo.

80. Agora que a Seleção Brasileira está em período de disputa das eliminatórias para a Copa de 2022, no Catar, Roberto Carlos, embora recluso durante a pandemia, chega aos 80 anos cheio de planos para o futuro. Os shows programados e não realizados continuam em sua agenda, e estão sendo remarcados. Tudo indica que, enquanto tiver saúde e disposição, o eterno Rei da Jovem Guarda continuará levando emoções a seus fãs em todo o país.